terça-feira, 19 de junho de 2012

BRASILEIRO POR OPÇÃO – VII
                    José Augusto de Castro e Costa

    Em 1967, aos 30 anos, o Tratado de Ayacucho é despertado de um adormecido estágio para necessárias adaptações.  É que fora observado tratar-se de um instrumento,  de certa forma insano, produzido por mentes precipitadas, desprovidas do censo comum,  por elaborá-lo não apenas com deficiência interpretativa, mas também com um perímetro  de demarcação mutilado.
     Ao estudar o referido Tratado, ninguém sabia onde encontrava-se as nascentes, no caso, do rio Javari, que seria o ponto inicial da fronteira e, o que é pior, o traçado geodésico não continha a longitude. O Tratado de Ayacuho  assemelha-se  à figura de um terreno que só possui a área frontal, sem a menor coordenada referente ao todo.  Com respeito ao Tratado, nada  consta acerca da extensão  longitudinal.
     Don Paravicini, Ministro Plenipotenciário boliviano, por possuir aguçada perspicácia  e assustadora ousadia, aventurara-se a por em prática, pessoalmente, seu projeto para  concretizar a instalação do posto aduaneiro no rio Acre, em detrimento  dos debates em busca dos dados corretos da demarcação da área pertinente ao Tratado de Ayacucho.
     Para D. Paravicini e até para muitos brasileiros, pouca importância havia  se a área demarcada estava  correta ou incorreta. O interesse movido pelo imperialismo econômico, prendia-se ao cobiçado imposto aduaneiro de  exportação, adicionado aos impostos de vendas a vista e em consignação, com os quais o Brasil deixaria de contar.
     Com o beneplácito  brasileiro, o Ministro Paravicini e sua comitiva são recebidos com saudações , ovações e excessivos  acatamentos, pelo mesmo governador Ramalho Junior,  que, meses anteriores, discordara dos propósitos da expedição boliviana , que eram exatamente os mesmos.
     Após tomar conhecimento de que inúmeros gaiolas havia partido para os rios acreanos, Juruá, Iaco e Acre, Don Paravicini,  dispensou a diplomacia, não fez cerimônia para interromper  as solenidades a si prestadas e partiu para o Alto Acre, por assegurar-se que o maior número de transportadores  havia-se dirigido para aquela região. Seu plano era dar início à devida cobrança de imediato, até mesmo antes  de solidificar a acomodação da Alfândega.
     O Ministro  Paravicini  recebeu, das autoridades amazonenses, votos de boa viagem e magnífico desempenho, agradeceu e fechou a ordem do dia levantando um brinde à imprensa brasileira.
     Era dezembro  de 1898, quando o vapor “Rio Tapajós”, fretado pelo governo boliviano zarpou, aproveitando as primeiras águas, com destino aos rios Purus e Acre. Com seus largos corredores laterais, para onde abriam os camarotes, os quais estendiam-se em fila dupla central, e com um vasto salão de jantar, à traseira, o navio era externamente todo aberto, apenas protegido do sol e da chuva por grossas lonas verdes, que permaneciam enroladas. Era assim, claro e alegre, como os “gaiolas” da região, em geral.
     Subindo o rio Purus cheio, o “Rio Tapajós” procurava encurtar a distância e evitar a maior correnteza, cortando as voltas e costeando as mansas praias convexas e afastando-se dos barrancos recôncavos, por onde se precipitavam as águas impetuosas.
     Para guardar o carvão para o Acre, onde a lenha preparada era cara e escassa, a tripulação brasileira, que já possuía experiência, procurava suprir-se desse combustível, ao longo do Purus,  aportando em diversos portos de lenha, onde compravam alguns milheiros de achas de madeiras de lei, tipo maçaranduba e pau-mulato.
     O “Rio Tapajós” entra, finalmente no tão falado rio Acre, o qual afigurou-se aos bolivianos muito estreito para comportar a fama de importância e de riqueza que o celebrizava.  Parecia-lhes incrível que um rio tão exíguo  tivesse mais de mil quilômetros de  curso, quase totalmente navegável.
     Enquanto isso, em Manaus ficara no ar, nos gabinetes, nas residências, nas esquinas, o assunto  contido no cotidiano,  a  propósito da questão do Acre, acolchoado pela incerteza  quanto ao destino  da opulência  manauara, contida na  grandiosidade de um Teatro Amazonas, na beleza arquitetônica do Tribunal de Justiça,na beleza confortante dos palacetes, na admirabilidade do conjunto de pré-moldados do prédio da Alfândega, que vieram em blocos e foram montados em Manaus, nos entretenimentos do espírito que enlevavam a alma do  manauara. Tudo isso parecia ter dias contados!
     Na região acreana, a vida transcorria dentro da normalidade, com  a acomodação das peles  de borracha nos porões, assim como o acoplamento  das jangadas do mesmo produto  nas  diversas  embarcações, sejam gaiolas,  lanchas e batelões.
     Chegando ao porto, a embarcação lançava os cabos, que eram amarrados, e as pranchas, por onde passariam  os moradores, ansiosos por noticias e correspondências.
     Alguns donos de seringal, mais pressurosos ou modestos, eram os primeiros a subir a bordo, para cumprimentar o comandante e o representante da casa, com quem tomavam os tragos.
     O descarregamento  era feito rapidamente iniciando pelas garrafas da saborosa aguardente Cocal e pelos cestos  de  farinha, que eram transportados do porto para o barracão, pelos seringueiros em festa.
     Descarregado o aviamento dos diversos seringais fregueses, as embarcações retornavam a Manaus e Belém,fazendo as mesmas escalas.
     À noite, o devido descanso era precedido  por rodas de conversa  de uns, acerca das atividades do dia, enquanto outros quedavam-se a contemplar a lua ou  o doce reluzir das águas barrentas do rio Acre, não obstante os inquietantes ataques  das vorazes carapanãs, que ferravam mesmo através  da roupa – geralmente de mescla ou caqui.
     Quando dois vapores se encontravam, saudavam-se mùtuamente com sonoros apitos , acerca das atividades do dia. característicos de cada casa  armadora, delicado cumprimento, geralmente acompanhado pelos amistosos acenos trocados entre os passageiros.
     Esta cultura já havia completado trinta anos, desde quando João Gabriel de Carvalho e Melo, a frente de seus homens, ergueu as  barracas para sinalizar o primeiro seringal organizado e estável da região acreana.
     Ia o vapor dos  bolivianos subindo, aproando sempre na tangência da  curva que contornava, fugindo da correnteza da água, que lambia o barranco  fronteiro, solapando as raízes das árvores ribeirinhas.
     O prático, na roda do leme, de olhos atentos, evitava o rebojo dos “troncos”, paus enfincados no fundo do rio, constituindo um grande perigo, temidos pelo encalhe ou furos do casco da embarcação. Iam desfilando à vista dos passageiros, numa demorada sucessão, os barracões dos seringais acreanos.
     O Estado do Amazonas exercia jurisdição sobre as regiões dos rios acreanos, com a Superintendência  sediada na vila Antimarí,  cujo secretário  era o advogado  José de Carvalho, cearense  do Crato  e a direção a encargo do Superintendente  Francisco Monteiro de Souza Junior.
     O advogado José de Carvalho Alencar não viria a ser o primeiro de sua família a ter envolvimento com o Acre.  A matriarca de sua família, Bárbara de Alencar, foi considerada a primeira prisioneira política, quando coadjuvou o comando da Revolução do Equador, uma manifestação revolucionária ocorrida na metade do século XVII, defendendo a autonomia de Pernambuco. Após o embate retirou-se para o Crato, onde constituiu família e  deu continuidade às  questões políticas, sempre visando a conquista das liberdades sociais. Teve, inclusive, um filho seu ocupando o posto de Presidente da Província do Ceará.
     Quatorze  anos  após a estada de José de Carvalho  em regiões acreanas, outro parente seu, Coronel da Força Nacional, Tristão de Alencar Araripe, ao ser nomeado Prefeito do Departamento do Alto Purus, iria protagonizar sérias questões políticas  em  Sena Madureira,  relacionadas  ao movimento separatista e autônomo do Juruá e  Alto Purus.




  

Nenhum comentário:

Postar um comentário