UMA VOZ ENTRE AS NUVENS
José Augusto de Castro e Costa
A aeronave já
iniciava o taxiamento em preparação para proceder a decolagem quando sentou-se
ao lado do velho Alberto um homem de
meia idade e, depois de cumprimentá-lo vaticinou, com certa naturalidade que
“Deus é a força do mundo, que dá luz e brilho às estrelas e tem o poder mais
profundo de dar forma às coisas mais belas”. E prosseguiu, falando que há
também, no mundo, quem tenha bastante força
e grande poder, porém, de dar forma às coisas mais assustadoras, mais
dolorosas, mais absurdas, mais
horripilantes. Quem? Provavelmente
aquele Força Negativa!
Enquanto o homem
falava, velho Alberto imaginava o fato de encontrar-se dentro de um avião, em
voo diurno ou noturno, cercado de CBs, em terrível e tenebrosa tempestade,
experimentando o tresloucado efeito de
descontroladas e alucinadas turbulências
indomáveis, constituir-se numa situação que, indubitavelmente, leva qualquer
ser animado às mais desesperadas atitudes, próprias de sua insignificante
pequenez, em busca encolerizada de livrar-se do que, em verdade, não é bom. Em
tal circunstância, o apelo por socorro é desesperadamente gritante. Muitos vão
ao nível do falecimento, passando antes pela sudoração.
A humanidade tem
assistido muitas situações desesperadoras, por completo. A muitos protagonistas
dessas situações não foi concedido condição para contar a história sofrida.
Suas almas não resistiram e retiraram-se.
Já estando a
aeronave posicionada em situação de voo cruzeiro, aquele companheiro de viagem
passa a transmitir ao velho Alberto
curiosa apologia cristã, com referência à natureza humana, tomando por
base a numerologia, esclarecendo-lhe o
profundo simbolismo que o número três exerce na história da humanidade.
É interessante
saber-se que o ser humano, diferentemente dos demais animais, é composto de
três substâncias, a saber: corpo, alma e espírito. Quem dá vida ao corpo é a
alma, sendo esta a promotora dos nossos estímulos, dos nossos anseios, dos
nossos ânimos e desânimos e até dos nossos sentidos.
Ao retirar-se, o
corpo morre.
A natureza
espiritual do ser humano é formada pela alma e pelo espírito, os quais,
enquanto estiverem no corpo humano são entrosados e inseparáveis,
proporcionando-lhe a vida.
Portanto o ser humano é corpo, é alma e é espírito. Neste aspecto, o
diferencial do ser humano é o espírito, o qual não é encontrado nos irracionais.
Velho Alberto
sentia-se como que abastecendo-se com
o que absorvia daquele companheiro de
viagem, o qual lhe dizia que, sendo o ser humano “espírito”, tem capacidade de conhecer Deus e
ter comunhão com Ele, enquanto sendo “alma” tem conhecimento de si próprio e
sendo “corpo”, é capaz de conhecer o mundo, através dos sentidos.
Dizia-lhe o desconhecido que o espírito pode conhecer o que a
alma não conhece. Entretanto esta, através da razão, pode conhecer coisas, ao
passo que o espírito pode discerni-las por intermédio da intuição.
Dando prosseguimento
ao argumento da tripartição, dizia
aquele passageiro que cada parte do ser
humano ainda divide-se em outras três, a saber-se:
1º- ao espírito pertencem : a consciência, a comunhão e a intuição.
2º- A alma é
constituída de: mente, emoção e vontade.
3º- O corpo é formado pelo que vemos: cabeça, tronco e membros.
Simplesmente “todo ouvidos”, velho Alberto, quase em modorra
porém entregue às surpreendentes sugestões,
nem se dava conta de questionar qualquer ponto do colóquio, muito menos saber
dados daquele palestrante.
Apesar do envolvimento, percebe que a viagem está chegando ao
seu destino, dado o início dos procedimentos característicos de diminuição de
altitude que a aeronave passa a apresentar.
Velho Alberto ainda capta os últimos esclarecimentos, acerca
da influência do número três na natureza humana
e seus respectivos significados.
Quando reconhecidas paisagens começam a ser visualizadas,
velho Alberto, instintivamente, é levado a identificar possíveis pontos de seu
torrão, mesmo diante do visível desmatamento. Observa um vasto campo aqui, uma
pequena porção de floresta ali, raras lagoas tipo açudes adiante, até
distinguir, quase no horizonte, a sinuosidade do estreito rio de água barrenta.
Quando vê surgir a
silhueta da cidade velho Alberto
volta-se para comentar com seu companheiro de viagem, o qual estava a
erguer-se, juntando ao peito um espesso volume de um livro. Pode ainda perceber
a boa aparência física do desconhecido, num traje de simples “blaser” em tom
azul celeste, esboçando um modesto e singelo sorriso, para em seguida, sumir
por completo, apesar de incessantes buscas empreendidas dali por diante.
Voltou a
vista para a paisagem que se descortinava
através da janelinha da aeronave e não reconheceu praticamente nada do que
avistava. Apenas identificava-se com as recordações vindas da infância, ao
banhar-se nas águas barrentas daquele rio, frequentadas desde a praia da Base
até ao Igarapé da Judia, pontos visitados no bojo de uma catraia alugada ao seu
Eládio, ou ao Hugo, ou Caboré.
Ao
preparar-se para o pouso, velho Alberto lembra-se, subitamente, do teor das
palavras ouvidas por quase três horas de voo.
Lembrou-se,
então, da natureza tripartite do ser humano e supôs que em alguma das três
partes poderia encontrar-se a fé e definiu-a
como sendo a fundamento das coisas que se espera e a prova das coisas
que não se vê.
E
questionou, entre si: por que só os seres e as coisas têm o privilégio de existir,
e logo a Deus isto é negado?!
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